José Mário Brandão na primeira pessoa

Em 2001, a Câmara Municipal do Porto atribui a José Mário Brandão a Medalha de Ouro de Mérito Cultural. As galerias Nasoni e Atlântica e, mais tarde, a Canvas e a Graça Brandão marcam a cena artística do Porto e de Lisboa, nas últimas três décadas.
A Galeria Graça Brandão faz este ano 17 de vida e, desde maio de 2006, está em Lisboa, no edifício da Interpress, onde estamos agora, na Rua dos Caetanos 26 A. Por ela passaram e passam Albuquerque Mendes, Victor Arruda, Gonçalo Pena, João Maria Gusmão + Pedro Paiva, Miguel Palma, Rui Chafes, Frederico Brízida, Paulo Lisboa, entre muitos outros.

Sim senhora, sou todo ouvidos.

Obrigado, Zé Mário.

Pergunte o que quiser.

A sua ligação ao mundo das artes começa pelo teatro, aos 18 anos, no Teatro Experimental do Porto. Queria seguir o caminho da actuação, nessa altura era sua intenção ser actor?

Claro, gostaria de ter sido, mas sabia que era um canastrão de primeira. Na altura não havia escolas como existem hoje por todo lado. Tinha boa figura, talvez se fosse hoje tinha tido os Morangos à perna a convidarem-me, mas não seria esse o caminho que quereria seguir.

Costumo dizer que não andei na universidade, mas que a minha universidade foram o Teatro Experimental do Porto, o Cineclube do Porto, o Instituto Francês no Porto e uma coisa muito importante: uma carrinha-biblioteca da Gulbenkian, que todas as segundas-feiras ia à minha terra, Oliveira de Azeméis, estacionava junto ao cinema e o sr. Brandão, que dirigia a carrinha, dava-me os livros que eu devia ler. Passei dos Cinco da Enid Blyton, para A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson através da Suécia da Selma Langerloff, para o Coração do Edmundo de Amicis, e depois para a Cidade e as Serras do Eça, para O Vermelho e o Negro do Stendhal, e por aí fora. Conforme ia crescendo ele ia-me dando aquilo que eu devia ler. Mais tarde, quando fui parar ao Porto, foram importantes a Livraria Leitura e o proprietário dessa livraria, o Fernando Fernandes, que também nos aconselhava o que deveríamos ler. Os livreiros foram muito importantes na formação das pessoas da minha geração. Em Oliveira de Azeméis havia o Hilário, que tinha uma livraria, e que nos dava às escondidas alguns livros, porque a maioria eram proibidos pelo regime.

Quanto a ser actor foi uma coincidência. Como trabalhava no Instituto Francês, fiz teatro em francês. Diga-se de passagem, que, nessa altura, e estou a falar em 1966, o Instituto Francês tinha 2500 alunos que queriam aprender francês. Hoje há́ 2500 alunos que não querem aprender a falar francês, que odeiam. Não sabem o que perdem.

O Teatro Experimental do Porto convidou para vir para Portugal o Ruggero Jacobbi, que era um encenador de teatro, um homem do teatro italiano que, na altura, dirigia o Piccolo Teatro di Milano, e que juntamente com o Adolfo Celi, que foi um dos primeiros mauzões dos filmes do 007, e que chegou a ser casado com a Tônia Carrero, foram importantes na renovação do teatro brasileiro, quando viveram no Brasil. O Ruggero Jacobbi quando veio para Portugal sugeriu ao TEP a encenação da Estalajadeira do Goldoni, que era uma peça que não levantaria problemas à PIDE, à censura. Mas a PIDE não facilitava a vida àqueles de quem não gostava. Ruggero Jacobbi acabou por ser considerado persona non grata e foi colocado na fronteira porque, no Brasil, e ele falava um português-brasileiro delicioso, assinou um manifesto contra a guerra colonial portuguesa e ficou na lista negra.

Subi à cena da Estalajadeira com uma dor de dentes terrível porque o António Assunção, que mais tarde foi um actor conhecido e já faleceu, e que ia fazer o papel que eu fiz, fugiu à tropa e foi para Paris. Eu andava ali à mão de semear. O João Guedes que era um cabotino delicioso, que quando não sabia o papel fazia um jogo de mãos e as pessoas concentravam-se no jogo maravilhoso de mãos e não sabiam que ele tinha tido uma branca. O João Guedes então indicou-me para o papel e eu era mau, fui mau, tinha má dicção, não sabia respirar. Tinha só uma figura engraçadinha, tinha 20 anos. Tive a sorte de trabalhar com grandes actores, não só o João Guedes, mas a Isabel de Castro.

Mais tarde foi secretário do FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica). Isso tem expressão, foi importante para passar para as artes plásticas, ou é só́ mais tarde que faz essa transição?

Isso aconteceu depois de ter estado em Angola, durante 27 meses, e de ter passado por outras experiências interessantes que não tiveram nada a ver com o teatro.

Depois do 25 de Abril, e depois do patrão da fábrica onde eu trabalhava ter fugido para o Brasil, e depois de ter regressado muito amargurado, e eu ter ficado desempregado e ainda muito mais amargurado, acabei, por mero acaso, por voltar ao TEP, que na realidade nunca abandonara. Desta vez como Secretário da Companhia profissional. Aqui passei a ter mais contacto com pessoas das artes plásticas, porque na altura todos vivíamos em comunidade, uns com os outros, sentíamos essa necessidade; era um tempo em que não existia aquilo que hoje isola as pessoas: os telefones, as redes sociais e por aí fora. Conheci o Zé Rodrigues, o Armando Alves, o Ângelo de Sousa e tantas pessoas de outras áreas, como o Eugénio de Andrade e o Arnaldo Saraiva, que passaram a ser catedráticos das minhas universidades.

Mas mais tarde, é-lhe feito o convite do escultor José Rodrigues para dirigir a Galeria de Arte da Cooperativa Árvore, no Porto?

Viver à noite, e o teatro vive muito de noite, não me estava no sangue. Se o nosso criador quisesse que vivêssemos de noite, tinha-nos colocado uns holofotes na cabeça. Por isso, e também para ganhar mais alguma coisa pois o que ganhava no TEP era muito pouco, tentei trabalhar de manhã. Encontrei o Zé Rodrigues na Praça D. João I, no Porto, e ele aconselhou-me a ir à Árvore e falar com o Henrique Silva. E foi assim que a partir de 1980 comecei uma nova aventura, que dura até hoje. O Henrique Silva que é pintor, tinha vivido em Paris e ficara amigo, ele e a mulher da altura, a fotógrafa Ursula Zangger, do casal Vieira Arpad. Conheci também um tipo que se vestia de maneira pouco usual para a época e que continua teimosamente a dar nas vistas, que vivia nas Antas perto de mim, e que costumava apanhar o mesmo autocarro que eu, o 78.  Era o Albuquerque Mendes, que passou a ser uma pessoa importante para mim. Ele, o Gerardo Burmester, o Pedro Tudela e tantas pessoas mais.

E depois como é que chegou à Galeria Graça Brandão?

Um senhor que andava no Porto de carrinha a fazer vendas tipo tupperware, ou seja, a vender quadros de porta em porta, apareceu-me na Árvore e andou por lá a coscuvilhar. Na minha sala tinha tudo arrumado de uma maneira, como dizem os franceses, negligé́, mas sabia o que tinha, aonde estava e como estava. Passado pouco tempo, o Armando Alves falou comigo e disse que ia abrir uma galeria com esse senhor, o sr. António Cabecinha, e convidaram-me para trabalhar. Na altura, tinha uma pessoa que foi também muito importante na minha vida, o Carlos Sousa, que era uma espécie de mentor e tinha tanta intimidade com ele, com a mulher e com os filhos, que me sentia fazer parte da família. O Carlos Sousa disse-me que não, que eu não deveria ir trabalhar para lá, mas passado pouco tempo deu o dito por não dito: ”Olha, o Armando falou comigo e afinal não vais trabalhar para lá, mas vais entrar como sócio”. E entrei como sócio, não tinha dinheiro, mas tinha géneros, obras de vários artistas que serviram para pagar a minha quota.

Mas tinha trabalhos porquê, já estava a comercializar arte?

Sim, porque já tinha a ligação com a Árvore, e tinha trabalhos meus, que entraram como capital na criação da Nasoni. Também tinha muitos trabalhos de um artista fantástico, muito mal-amado, chamado Darocha. E tinha uma vantagem a meu favor. Eu conhecia e tinha entrada em casa da Vieira da Silva, porque esse sr. Carlos Sousa, que já faleceu, um dia convidou-me para ir a Paris comprar um Vieira da Silva. Ingenuamente fui a Paris de comboio, fui visitar o Guy Weelen, que viria a ser aquilo que eu chamo um dos meus Heróis, que era o secretário da Vieira e que me levou depois a casa dela onde a conheci. A Vieira achou muita piada eu ir vestido de azul e respondi-lhe “dona Helena, mas o que é que queria que eu vestisse!”. Também conheci o marido dela que era um homem extraordinário. O doce Arpad Szenes, que tinha uma paixão pela Vieira como eu nunca mais consegui ver um homem ter por uma mulher. Se eu estava com ele sozinho, ele brilhava, se a Vieira entrava ele deixava-a brilhar. Era como se pegasse num projetor inexistente e centralizasse a luz nela.

Essa vantagem de eu ter o caminho aberto para a Vieira foi muito importante para a galeria. Aliás, o padrinho da galeria que se chamou Nasoni, foi o Guy Wellen. Um dia estava com ele, na casa dele em Paris, e falei-lhe do projeto da galeria, e que a rua onde a galeria ia funcionar se chamava Rua Galeria de Paris, que queriam que a galeria se chamasse Galeria de Paris, mas que eu achava que podia ligar a galeria à chamada École de Paris. Então, o Guy disse “Porque não dão o nome daquele arquitecto italiano do Porto”. Eu fiquei um bocadinho baralhado e disse “O Siza não é italiano!”, mas de repente fez-se luz e vi a torre do Nicolau Nasoni. Por isso, nasceu a galeria com o nome de Nasoni, o que foi uma complicação para se poder registar o nome.

Não era português?

Não era português, era italiano, mas o nosso advogado, o dr. Guilherme Figueiredo, organizou um dossier fantástico e conseguiu provar que Nasoni era como se fosse português.

A Nasoni tinha tudo para ser uma galeria muito importante, mas com nove sócios é muito complicado. Embora a direção artística estivesse centralizada no Armando Alves e em mim, sobretudo no que se referia aos jovens artistas, gerir uma galeria era complicado e desbundou para um disparate. A certa altura saí da Nasoni, abri um espaço muito pequenino da Rua da Restauração, comecei a trabalhar com o Albuquerque, com o Pedro Tudela, com o Rui Chafes, que se puseram ao meu lado, e daí nasce a Galeria Canvas & Companhia.

Mas, na Canvas estava sozinho!

Sozinho, mas por razões de logística. Isto demoraria muito tempo a contar. Tive um sócio, o Francisco Gonçalves. Na Canvas & Companhia comecei a abrir a galeria ao Brasil. Chegou o Efrain Almeida, aliás, o primeiro foi o Victor Arruda. Na altura, todos achavam que eu era doido porque o Brasil não interessava para nada; o Brasil era só́ samba, futebol, cachaça e pouco mais. Mas o Brasil é um país com um passado fantástico. Costumo dizer que nós ainda andávamos a pintar em cavalete, quando os brasileiros já estavam anos e anos à nossa frente. O Albuquerque Mendes, que é um resistente, foi muito importante para mim neste alargamento ao Brasil. Quando deixei a Rua da Restauração e passei para a chamada Rua das Galerias, no Porto, aliás, a Rua das Galerias foi uma feliz “invenção” do Fernando Santos, expus a Lygia Pape, naquela que seria a sua primeira exposição individual fora do Brasil. A vida continuou. Conhecer a Lygia, foi outra das coisas muito boas, foi o mais bonito presente que o Albuquerque me deu. Entretanto, começou a aparecer pela galeria um senhor todo excitado com a ideia de ser colecionador, que era o Pedro Almeida, e o Pedro Almeida um dia disse-me “Zé́ Mário vamos fundar uma galeria com o João Graça que está em Lisboa, e você̂ está no Porto, cada um para seu lado”.

Então aí é que surgiu a Graça Brandão?

Sim, e quem foi o padrinho desta foi o Rui Chafes. Um dia estava na Praça do Obradoiro em Santiago de Compostela e telefonei ao Rui a dar a notícia. Disse-lhe, “Mas não sabemos que nome lhe havemos de dar” e o Rui de imediato disse “Graça Brandão”, ou seja, fez a juncão do nome do João Graça com o meu nome José Mário Brandão, portanto a galeria passou a ser Graça Brandão. Segundo dizia o Rui Chafes “As mulheres são as melhores galeristas que existem no mundo”. Mas não existe nenhuma Graça na jogada, e pronto, depois mais uma vez uma sociedade que não correu bem, por ambição dos meus sócios, que criaram uma sociedade LLC, sediada num paraíso fiscal. Sonhavam com grandes ganhos, e então eu parto para Lisboa, muito triste por abandonar o Porto definitivamente.

Desde 2006 que está aqui onde estamos agora.

Sim, estou neste espaço. Ao princípio toda a gente dizia que eu era maluco, que o espaço era um bocado complicado, mas quando entrei cá apaixonei-me. Acho que não há maus espaços para expor; há maus artistas, maus curadores, e maus trabalhos.  Isto foi uma lição que o Vicente Todolí, quando era diretor de Serralves, me ensinou e é verdade. Tive sorte e durante muito tempo pude emprestar o espaço a toda a gente que necessitava.

a galeria graça brandão é residente no hub criativo do bairro alto, interpress
Vista do piso superior da Galeria Graça Brandão

Fez outras coisas?

Sim, a Fernanda Lapa levou, aqui, à cena uma peça de teatro, apesar da acústica ser má, de um jovem que tinha ganho um prémio na SPA, que se chamava Ódio. Todos os dias desmontávamos a parte de baixo da galeria, onde tínhamos uma exposição do Albuquerque Mendes, e a Fernanda montava o cenário. Era quase como se fosse um concerto de câmara, algumas cadeiras para poucas pessoas; vencia-se assim a má acústica. Quem dirigiu a peça foi o Francisco Camacho, um homem da dança. O Albuquerque delineou o cartaz e utilizou, sem eu saber, uma foto minha tirada em Angola.

poster da peça Ódio que se realizou na galeria graça brandão
Poster da peça de teatro realizada na Galeria Graça Brandão

Cheguei a emprestar a galeria à noite para grupos de dança trabalharem. Mas isto de ser generoso, deixar as pessoas no espaço, correu mal. Um dia chego cá e tinham-me roubado o computador e todo o passado que tinha naquele maldito computador foi-se. Portanto, a partir daí cai na real e não emprestei o espaço a mais ninguém a não ser à companhia de Teatro do António Pires para realizarem um espetáculo sobre o Lorca, que coincidiu com a pandemia.

Colaborámos no Indie 2013. Realizaram-se cá performances, a Sónia Batista, o Ivan Santana, a Sofia Silva, e o Claúdio Hochman com os seus alunos. Uma das primeiras performances que se realizou foi da Ana Borralho e do João Galante. Também o Miguel Bonneville passou por cá. Tenho pena de não o fazer mais vezes.

E diga-me uma coisa, conheceu o José Manuel Gonçalves Pereira quando veio para aqui porque foi a ele que lhe alugou o espaço? E daí surgiu uma relação.

Sim, é uma pessoa por quem tenho um respeito muito grande, que neste momento se estende ao Emanuel e à Rita, e tenho só́ pena que não apareça mais por cá, mais que não seja, para irmos almoçar aqui na Travessa das Mercês, à minha cantina preferida, a Adega das Mercês. Foi por causa dele que a Adega das Mercês ficou a minha cantina preferida.

Quem me indicou este espaço foi o João Tabarra, pois a Dora, a mulher dele, estava ligada a uma companhia de dança que tinha sede no edifício. Conheci o engenheiro e verifiquei que tinha interesses culturais, e o Pedro Mesquita da Cunha, que foi um dos meus apoios para ter tido coragem de vir para Lisboa, já conhecia o Eng.º Gonçalves Pereira e facilitou a aproximação. Sofremos os avanços e recuos dos tempos em que vivemos, as pandemias, mas há́ sempre uma força estranha que sinto quando entro neste espaço mágico, pois é magia pura.

Vou-lhe ler um trecho que li neste livro Sob a Pele, uma entrevista da Sara Antónia Matos ao Rui Chafes. Deixe-me ler. O Rui Chafes diz assim: “Mas todas as situações são diferentes. Em Portugal, por exemplo, trabalhei durante mais de 20 anos com o José Mário Brandão: realizámos muitos sonhos e construímos muitas coisas juntos, inclusivamente uma grande amizade, que ainda hoje se mantém inalterada. …”. Sendo que a Galeria Graça Brandão e o Rui Chafes se tornaram uma galeria e um artista, ambos de referência, que memorias é que isto lhe traz? Porque todos estes encontros aconteceram naturalmente, e foram crescendo naturalmente.

Tive a sorte de ter uma casa maravilhosa no Porto e que serviu de apoio a toda a gente que por lá passava, vinda do Brasil ou de Lisboa, sobretudo do teatro e das artes plásticas. O Rui, que é de Lisboa, passou por lá. Acompanhei o crescimento dos filhos do Rui e acho que ele é um artista extraordinário. Infelizmente deixei de trabalhar com ele, não por culpa dele, mas por incapacidade económica minha. Surgiu uma outra galeria que tem uma dinâmica diferente da minha e que lhe dá o apoio que eu não lhe consigo dar, a ele e à família. Fico triste, mas é a realidade, e não tem nada a ver com a nossa amizade. Mas ficou aqui à entrada da Interpress, quem entra pelo Luz Soriano, encontra uma belíssima escultura dele, que não passa despercebida a quem passa por lá. O Eng.º Gonçalves Pereira teve a inteligência de a comprar.

Para além da relação profissional há uma relação de amizade.

Eu disse sempre ao Rui que a amizade é uma coisa muito importante. E o Rui, há anos teve um grave acidente, antes dos filhos nascerem. Esteve em coma e quando saiu do hospital disse-me “Zé́ Mário tens razão, a amizade é muito importante. Se não tivesse tantos amigos não tinha conseguido resistir.” O Rui é uma pessoa bem formada, é uma pessoa culta, é uma pessoa que só́ lamento andar agora num corrupio, felizmente para ele, com exposições por todo o lado, e nos encontrarmos poucas vezes. Uma exposição que é absolutamente, como se diz em português agora, incontornável, é a exposição da Fundação Gulbenkian em que ele faz um diálogo com o Giacometti. Na minha vida, se escolhesse 10 exposições, evidentemente que colocaria esta exposição na lista.

Aqui há um ano, reinaugurou depois da pandemia com a exposição Fénix, que é uma retrospectiva da galeria, com os artistas com que ao longo do tempo foi trabalhando e representando.

Durante os dois anos da pandemia, fui realmente um bocadinho mais abaixo do que outras pessoas porque já́ não sou uma criança. Como o pássaro que nasceu das cinzas, reabri a galeria com uma exposição a que dei o nome de Fénix. O Fénix, o tal pássaro que nasce das cinzas, deu-me forças e, durante os primeiros tempos pós-pandemia, mergulho no meu passado, desenterro trabalhos que possuo, dando oportunidade às pessoas mais jovens para os conhecer e cá estou! Agora temos uma exposição do Albuquerque Mendes, e a vida continua.

E o que é que mudou no mundo na comercialização de arte entre 1970, quando ainda estava no Porto a começar, e os tempos actuais?

Mudou muito, porque ter um quadro na parede era sinal de estar bem na vida, sinal de se sentir realizado e até um prazer que outras coisas não davam. Era como ter o Divino. Hoje as pessoas já́ não recebem tanto em casa, preferem ir a um restaurante para ver quem está e para se exibirem. Não precisam de ter o quadro na parede, e até costumam dizer que os bancos que investiram em arte faliram, mas não é bem assim, faliram, mas não foi por investirem em arte. Os valores mudaram muito. Há́ pessoas que continuam a ter gosto pela arte, a ter uma relação especial, mas são poucas.

Quando vim para cá, além de alguns particulares, eram as Instituições que compravam, os bancos, o Espírito Santo, o Rendeiro, o Berardo, a Portugal Telecom, e alguns museus. Os jornais falavam muito de arte, e hoje falam de futebol. Costumo dizer que hoje se quisermos que falem da galeria tem de se cometer um assassinato aqui e com muito sangue para os vampiros da comunicação social aparecerem. O mundo mudou muito, é um mundo novo que está a surgir.

E há muito mais oferta, mais artistas, mais galerias?

Mais artistas é uma coisa muito relativa. Os artistas surgem e desaparecem, e as galerias também, porque aqueles que realmente são artistas, e o criador lhes coloca uma coroa na cabeça, são muito poucos. Mas continuo sempre a apresentar artistas jovens, o que demonstra que estou atento e a pensar no futuro.

Zé Mário qual é a sua relação com a arte? Houve circunstâncias na vida que o puxaram para a arte, mas pessoalmente tem um amor à arte?

O que é importante para mim é fazer sempre as coisas por amor. A arte é um negócio como outro qualquer, na realidade é, mas, para mim, o contacto com os artistas é muito importante e continuará a ser muito importante. Expus sempre ou quase sempre as pessoas de quem gostava, mas partindo do princípio de que tinham qualidade, se não tivessem qualidade não as expunha. Por exemplo, a Lygia Pape, que é hoje uma artista com projeção internacional, realizou a sua primeira exposição individual fora do Brasil na minha galeria, e já depois de ter feito setenta anos.

Para um artista uma galeria é um aspecto muito importante?

Claro, mas uma galeria tem de ter sempre os pés na terra e apoios económicos que lhe permitam arriscar. Há pessoas que compram arte em Portugal e que procuram ir diretamente à fonte, evitando os intermediários. Esses não gostam dos artistas, porque se quisessem ajudá-los comprariam nas galerias que os representam, e que divulgam a sua obra, e que vão a Feiras, e por aí fora.

Uma boa galeria, quero eu dizer, pode fazer um artista?

Pode, mas só se o artista for bom. Costumo dizer: se houver matéria-prima boa. Em Portugal as galerias nunca tiveram o poder económico necessário para projectar um artista.

Quando estudei em Londres, tive uma conferência com o Nicholas Logsdail que é o dono da Lisson Gallery, e lançou os grandes artistas dos anos 70/80, Richard Deacon, e outros. Ele dizia exatamente isso, que hoje o mundo das galerias é meramente comercial, e que naquela altura não era. Os galeristas acreditavam e gostavam do trabalho dos artistas que representavam, e por isso investiam durante mais tempo.

Os tempos mudam. O António Bacalhau, que foi o galerista da Palmira Suso, disse-me um dia que eu era uma galerista daqueles que estão em vias de extinção. A minha maior vantagem como galerista foi nunca ter feito contas antes das exposições, e o pior erro que cometi, foi nunca ter feito contas antes das exposições. Porque muitas vezes a pessoa não expõe só́ aquilo que sabe que é para ganhar dinheiro. E agora como vai ser daqui para a frente? É sempre uma interrogação.

Muito bem, ficámos a conhecer parte do percurso do Zé́ Mário.

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Entrevista conduzida por Marta Soares.

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